Muitas pessoas me perguntam porque eu passei a me interessar pelo estudo do autismo e qual a contribuição que eu posso dar nesses casos. Quando fiz o mestrado e o doutorado na França escolhi o serviço de doenças metabólicas e nutricionais que englobava as doenças hoje conhecidas como raras.
Durante todos os 5 anos que passei nesse serviço não vi nenhuma criança autista. E posso dizer que durante toda a graduação e residência também não. Entretanto, todo o conhecimento que adquiri no estudo da nutrição, vitaminas, minerais e radicais livres, que fizeram parte tanto do mestrado, quanto do doutorado, além do estudo do metabolismo das diversas doenças metabólicas, nutricionais e raras que vinham ao hospital, constituíram a base necessária para a compreensão desta doença que atinge de forma tão diversa cada criança. E foi esse conhecimento que me permitiu auxiliar tantas crianças.
O espectro autista é composto por crianças que apresentam manifestações similares, mas que são completamente diferentes entre si. E, não poderia ser diferente porque o autismo é uma doença aonde genética, ambiente e alterações metabólicas, nutricionais, gastrointestinais, autoimunidade e neuroinflamação se combinam entre si, cada uma tendo um papel diferente em cada caso, formando uma combinação única que se reflete na grande variedade de quadros que compõem o espectro.
GENÉTICA
Por muito tempo se imaginou que a genética poderia explicar grande parte do que acontecia, mas isso foi um engano, porque embora muitos genes possam atuar no espectro autista, cada criança apresenta variações genéticas muito diferentes.
A revista Cell em fevereiro de 2020, no maior estudo de exoma no TEA (transtorno do espectro autista), publicou um estudo aonde foram coletadas 35.584 amostras de sangue para análise do exoma, das quais 11.986 de pessoas com TEA. O resultado foram 102 genes associados ao autismo. Além disso, outros estudos, mostraram que mais de 800 SNP, que são variações de um único nucleotídeo no gene, estão também associados ao autismo.
A prevalência do autismo vem aumentando de forma assustadora. Ela é calculada nos USA pelo CDC (centro de controle de doenças) nas crianças aos 8 anos de idade. Até o final do meu doutorado em 1990, os casos eram raros. Em 1970 a prevalência do autismo era de 1 criança a cada 10.000, no ano 2000 já era de 1 criança para cada 150 e em 2016 acometia 1 criança para cada 54. Esse aumento não condiz com o padrão de aumento esperado de uma doença puramente genética. Para que esse aumento ocorra é necessário que um ou vários fatores diferentes sejam associados aos genes, para que então o autismo se manifeste.
Em 2018 foi criado o modelo do copo, que é muito interessante. Nesse modelo eles imaginaram um copo aonde colocaram os genes comuns, os genes associados ao autismo, os SNPs e os fatores ambientais, representados por bolas, cada uma com um tamanho correspondente a sua capacidade de desencadear o autismo. Quando essa bolas ultrapassam a capacidade do copo e transbordam ocorre o TEA.
Esses fatores ambientais tem sido motivo de inúmeras pesquisas e os principais são:
1- Medicamentos: paracetamol (tyenol), ibuprofeno, antibióticos,
2- Poluentes
3- Metais tóxicos como chumbo, mercúrio e alumínio
4- Agrotóxicos, herbicidas (glifosato),
5- PCBs (bifenilpoliclorado)
6- Infecções virais e bacteriana
7- Alcool, drogas,
8- Cloro
9- Deficiência de zinco e folatos na gravidez.
DISTÚRBIOS GASTRO INTESTINAIS
Muitas crianças autistas apresentam sinais de desequilíbrio gastro intestinal: barriguinha estufada, náuseas, vômitos, diarreia, fezes irregulares com consistência e formatos irregulares, gases, dor abdominal entre outros. Geralmente esses sinais estão associados a alterações do microbioma (disbiose – alteração da flora intestinal) causando inflamação e alteração da permeabilidade intestinal, permitindo que alimentos não completamente digeridos atinjam a circulação sanguínea desencadeando alterações auto imunes e neuroinflamação entre outras consequências.
Muitas vezes essas alterações se iniciam após o uso de um antibiótico. É muito comum a criança autista ter apresentado infecções de repetição, principalmente de ouvido, na primeira infância. Esse antibiótico, além de matar as bactérias responsáveis pela infecção que motivou seu uso, também mata as bactérias intestinais causando todo desequilíbrio subsequente. As bactérias intestinais (microbioma) tem uma participação importante na absorção dos alimentos e na síntese de vitaminas. Na presença de uma microbiota saudável as células intestinais ficam ligadas e participam da formação da camada de muco do intestino que protege contra a hiperpermeabilidade. As crianças nascidas de cezareana já tem uma flora intestinal prejudicada, assim como as que não foram amamentadas.
Alguns estudos mostram que o desequilíbrio da microbiota permite o crescimento de bactérias nociva e associadas ao autismo como o Clostridium difficile, a Suterella e o Desulfovibrio (proteobactéria). Segundo Dr. Sidney Finegold, um grande estudioso do TEA, os autistas tinham 10x mais clostridium. A toxina B do Clostridium difficile pode desencadear a morte celular programada de neurônios. É interessante notar que o herbicida glifosato herbicida reduz as bactérias benéficas na microbiota intestinal sem exercer nenhum efeito na população do Clostridium difficile. O Clostridium difficile produz propionato que diminui a capacidade do cérebro infantil de formar e romper sinapses durante o desenvolvimento. Alguns pesquisadores tem estudado o transplante fecal no TEA mostrando resultados significativos.
Atualmente já é possível realizar a análise do microbioma intestinal (flora intestinal) pela técnica que analisa o DNA desse microbioma permitindo portanto uma análise extremamente detalhada. Esse exame auxilia na compreensão dos desequilíbrios da flora intestinal e permite que um tratamento mais focado seja realizado.
ALIMENTOS
As alergias e intolerâncias alimentares tem um papel muito importante no autismo. O glúten (uma proteína encontrada no trigo, centeio, cevada e aveia) e a caseína (encontrada no leite e todos os seus derivados) são as proteínas mais frequentemente associadas ao autismo. Menos frequentemente, mas cada vez mais encontrados, diversos outros alimentos também tem seu papel no TEA. Existem diversas teorias de como essas proteínas causam neuroinflamação no TEA. A restrição alimentar mais prescrita é a dieta sem glúten e sem caseína. Muitos exames podem ser realizados para mapear os alimentos mais provavelmente associados ao autismo em cada pessoa. No TEA, a dieta precisa ser sempre personalizada.
DISTÚRBIOS METABÓLICOS
As alterações da metilação são muito importantes no TEA. A metilação é o centro do processo que ocorre em todas as células e é responsável pela: reparação celular, produção de neurotransmissores (serotonina, dopamina), função saudável do sistema imune (proteção contra as alergias e intolerâncias alimentares, asma, eczema, e infecções), teores de homocisteina, produção de glutationa, detoxificação (remoção de toxinas, bactérias e vírus) e proteção dos cromossomos contra mutações e câncer. Muitos SNPs, que são variações de um único nucleotídeo no gene, afetam esse metabolismo, como por exemplo, os SNPs da MTHRF que faz a metabolização do folato da alimentação em metil folato que atua na transformação de Homocisteina em metionina.
A análise desses diversos SNPs e de outros que atuam no metabolismo da vitaminas, dos neurotransmissores e em diversas outras vias metabólica podem ser feitas laboriatorialmente, o que auxilia na compreensão e tratamento no TEA.
DISFUNÇÃO MITOCONDRIAL
As mitocôndrias são as fábricas de energia (ATP) das células. O cérebro utiliza 20% do total energético produzido e é muito prejudicado quando essa energia é produzida em menor quantidade. Um fato curioso é que ela tem o DNA próprio, diferente do restante do DNA do organismo. Durante a fecundação a mitocôndria oriunda do espermatozoide na grande maioria das vezes é degradada restando apenas a mitocôndria do óvulo. No TEA, a disfunção mitocôndrial causa hipotonia muscular, problemas de motilidade intestinal como constipação, respiração bucal, dificuldade para articular algumas palavras, cansaço e fadiga e alterações da imunidade.
A disfunção mitocondrial pode ser primária, ou seja, de causa genética, ou secundária devido a causas ambientais. Os principais fatores que interferem são: toxinas ambientais, metais pesados (mercúrio), fluoreto, agrotóxicos, alguns medicamentos, toxinas endógenas como o ácido propiônico produzido pelo clostridium de espécies patogênicas, candidíase, estresse e alterações da metilação. Na disfunção mitocondrial a eliminação das substâncias que possam estar interferindo na função mitocondrial pode auxiliar na melhora dos sintomas.
Devido a todos esses fatores cada pessoa autista é única e necessita de um tratamento personalizado.
Sou Dra. Berenice Cunha Wilke, médica formada pela UNIFESP em 1981, com residência em Pediatria na UNICAMP. Obtive mestrado e doutorado em Nutrição Humana na Université de Nancy I, França, e sou especialista em Nutrologia pela Associação Médica Brasileira. Também tenho expertise em Medicina Tradicional Chinesa e uma Certificação Internacional em Endocannabinoid Medicine. Lecionei em universidades brasileiras e portuguesas, e atualmente atendo em meu consultório, oferecendo minha vasta experiência em medicina, nutrição e medicina tradicional chinesa aos pacientes.
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